Solta-Mente | 2 Horas Sem Nacionalidade Aparente

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Quando o revisor me perguntou se eu falava inglês, encolhi os ombros e sorri apologeticamente, com o ar indefeso de quem se sente inútil por não saber comunicar. Tentou várias línguas. Fiz o mesmo ar, de bilhete esticado para a obliteração. O senhor do fundo diz-lhe “deve ser daqueles países tipo Polónia ou assim”. O revisor duvidou. “Não parece. “

Concentrei-me no chão do combóio. A situação que começara por mera preguiça minha estava a ganhar contornos hilariantes. Mas agora eu tinha de aguentar as sardas e não me desmanchar a rir, pensando o que significaria “um país tipo Polónia?”

Não me apetecia falar, e ninguém me obrigaria. Suponho que o tamanho da minha mochila de campismo e o facto de viajar sozinha me dava estatuto de “estrangeira”. Ou as sardas.

Nada de mal, o homem estava a tentar ser simpático, talvez para sugerir a casa da prima que aluga quartos, ou o restaurante do amigo. Nunca ficarei a saber. Fiz de conta que não percebia inglês, francês, espanhol, alemão arranhado, sei lá mais o quê. Não tentaram português e fui assunto de conversa enquanto mandavam países para o ar, entre si, cada vez que o revisor passava… e eu acabei por me concentrar na música e no livro pois supostamente não percebia a conversa.

Sentou-se a meu lado, umas estações mais à frente, uma rapariga loira. Portuguesa da Eslovénia, ou Alemanha, quiçá. Mostrou passe, percebeu imediatamente a desdita e piscou-me o olho, apontando para o que eu estava a ler.

Livro português, em português. Risos sufocados ao ponto de chorar. Depois, acabei por distrair-me no livro e na música. No final da viagem, atrás da rapariga, esperava a minha vez de sair e vi o revisor. Não resisti. Já estava a salvo da conversa de circunstância, era a vez da parvoíce “Então boa noite e bom fim de semana!” despedi-me alegremente. A minha cúmplice a rir à gargalhada e um revisor branco como a cal dos Algarves. Bem, eu só fiquei calada quase duas horas… o homem envergonhou-se sozinho. É por estas coisas que eu não tenho salvação. Não presto de tão má. Qualquer dia sou arremessada do combóio ou até… do país.

Selma Nunes

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